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  • Foto do escritorTiago Araripe

Meu interior na vidraça


Cine Cassino, um dos cinemas do Crato à época da minha adolescência,

homenageado em canção do álbum Cabelos de Sansão. (Foto: Pachelly Jamacaru)


O texto a seguir foi escrito em junho de 2014, a pedido de uma amiga e a propósito de um dos aniversários da minha cidade de origem, no Cariri cearense. Encontrado mais de oito anos depois, o sentido e o sentimento permanecem praticamente os mesmos.

 

Assim como eu, meu mundo interior nasceu no Crato. Não foi um parto rápido. Veio sem pressa e determinou o ritmo em que eu caminharia.


Nasceu nos textos que meu avô José de Figueiredo Filho pedia que eu datilografasse, a troco de picolés da sorveteria Bantim. Catando milho numa velha máquina, eu via as palavras marteladas no papel ganharem forma e sentido. E era como se marteladas dentro de mim fossem.


Esse mundo nasceu também de uma tarefa demandada algumas vezes pelo meu avô: registrar, num gravador de fita, manifestações de reisados, banda de pífanos e maneiro-pau, sons de uma cultura ancestral e muito rica.

Nasceu de uma primeira longa conversa com o amigo Emerson Monteiro na Praça da Sé, onde pude trocar ideias a respeito dos livros que pegava para ler, aleatoriamente, na estante dos meus pais Jósio e Eneida. Surgiu no relacionamento com as primeiras namoradas, naquela mesma praça. Nasceu do entusiasmo de lançar, com Assis Lima e outros amigos, o jornal Vanguarda, impresso na gráfica onde era confeccionado o tradicional periódico da cidade, Ação. Nasceu de uma admiração que nunca arrefeceu por aquela geografia de serra e vale, de nascentes e verdes, de palmeiras e água corrente nas levadas, de rostos que contavam, sem palavras, histórias de vida e de luta de um povo. Nasceu nas cenas que saltavam aos olhos nas telas do Cine Cassino ou dos cinemas Moderno e Educadora, eu driblando porteiros para ver filmes que a censura não permitia.


Nasceu de tudo que a imaginação me permitiu viver num centenário sobrado da Praça da Sé, cheio de morcegos e traquinagens compartilhadas com meu irmão Flamínio. (Sobrado que, aliás, já não existe, assim como a casa dos meus avós José e Zuleika, onde nasci, e quase todas as outras onde morei.) Nasceu quando, já estudando no Recife ou morando em São Paulo, pude perceber melhor o universo que era minha cidade, com suas contradições e contrastes que começavam no meu próprio ambiente familiar, na religiosidade da família da minha mãe e na austeridade da família do meu pai. Quando pude dar mais valor a uma diversidade cultural onde cabiam desde os Irmãos Aniceto, remanescentes indígenas dos pés de serra, ao conjunto Ases do Ritmo, dos bailes no Crato Tênis Clube.


A vida me conduziu por paisagens urbanas densas, onde tudo pede urgência e velocidade. E onde, em curioso contraste, cavalos de força, a despeito de sua potência, pouco se movem, congestionando as pistas. Onde os meios de comunicação dão cada vez mais espaço ao que é de consumo rápido e onde há pouco lugar para exotismos como originalidade.

Entretanto, cá dentro de mim, está o Crato. Não é apenas uma memória, saudosismo a que se permite o sexagenário que sou. É uma vivência que colocou em mim respiradouros e horizontes. Isso certamente não é tão amplo quanto os dois séculos e meio desse aniversário tão marcante, mas vale uma vida inteira.



Veja, AQUI, mais postagens do blog.

 
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