Texto de Zeca Baleiro no encarte do CD Cabelos de Sansão (Saravá Discos, 2008).
Como alguns já sabem, o velho vinil Cabelos de Sansão (Lira Paulistana, 1982) ganhou nova vida em CD graças a Zeca Baleiro - e a Rossana Decelso, sua sócia no selo Saravá Discos à época do "renascimento" do álbum. Com direito a noites de autógrafos e pockets shows em Fortaleza, São Paulo e Recife. A transformação de formato demandou alguns cuidados especiais, como o belo projeto gráfico assinado por Andrea Pedro. Para o encarte, Zeca escreveu generoso texto que reproduzo mais abaixo.
Assim, já começo a entrar no clima do aniversário de 40 anos do disco, que ocorrerá em 2022. E espero concretizar algumas ideias para marcar essas quatro décadas no ar, prolongadas graças às plataformas de música.
Onde ouvir Cabelos de Sansão:
E, sem mais delongas, vamos ao texto de Baleiro.
Mágicos Cabelos de Sansão
Sempre fui um apaixonado por discos. Do tipo que entra às cegas na loja e leva pra casa um disco que não conhece, mas cuja capa ou título são instigantes. Ou então quando sou atraído pelo nome do artista, seu mistério ou estranheza. Foi usando esses “critérios” que um dia descobri o lp “Cabelos de Sansão”, de Tiago Araripe.
Eu era estudante e havia ido a Niterói participar de um tal “Seminário de Cultura”, um desses eventos universitários em que a gente mais se diverte que aprende. Estávamos duros (como convém ao bom estudante), mas não resistimos, eu e alguns amigos, tendo ido ao Rio, à tentação de fuçarmos numa grande loja de discos que havia em Botafogo.
Foi lá, entre os sucessos da estação, que me deparei com aquela capa esquisita, um sujeito magro, sorriso provocador, montado num leão com a via-láctea ao fundo. Peguei o encarte e lá reconheci nomes de músicos e artistas que admirava, uma pequena constelação que tomara parte no disco. Deduzi que Tiago era próximo à turma do Lira Paulistana, a chamada “vanguarda paulistana”, que no início dos anos 80 havia sacudido a música brasileira, tendo em Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção seus maiores ícones.
Já teria valido o achado, pensei. Comprei no escuro. Só fui ouvi-lo semanas depois, em casa, após uma pequena odisséia rodoviária (viajávamos de ônibus, como deve viajar o bom estudante). Chegando em casa, ansioso, pus a bolacha pra tocar. Uma sonoridade incomum de cara prendeu a minha atenção, assim como a voz aveludada do cantor.
Fui ouvindo as canções e me assustando a cada faixa, com a atmosfera sonora a um só tempo ácida e lírica, rica de timbres, as letras de pura verve e os arranjos de espírito tão irreverente quanto engenhoso. Uma mistura bem urdida de música urbana com cultura popular nordestina, e música de câmara com a eletrônica ainda incipiente da época antecipava as fusões que virariam norma na cena musical brasileira dez anos depois.
De imediato reconheci três pequenas obras-primas ali - “Cine Cassino”, “Fios da Light” e “Redemoinho”, mais a delirante e bela versão de Augusto de Campos para “Little Wing”, clássico de Hendrix. Músicos fantásticos como Oswaldinho do Acordeon, Tony Osanah, Jica y Turcão, Félix Wagner, Mané Silveira e Dino Vicente faziam a festa e os arranjos. O povo do Lira, Tetê Espíndola, Passoca, Itamar e Vânia Bastos, davam o auxílio luxuoso nos vocais. Algumas daquelas canções passaram a fazer parte da minha vida, como um “Carinhoso” ou um “Assum Preto”, de tal maneira que penso que um dia gravarei uma delas. Tempos depois, quis o destino que eu e Tiago nos tornássemos amigos, e mais adiante, parceiros. Juntos compusemos três canções, ainda inéditas, que eu espero que um dia ganhem o mundo.
Ainda gosto de ouvir o meu velho vinil arranhado, assim posso experimentar algo próximo do gozo mágico daquela descoberta, de quando eu era estudante. Mas isso é só nostalgia. O bom mesmo é que outras pessoas, estudantes, operários, poetas, yuppies, bichos-grilos, loucos e padres agora poderão ouvir este trabalho primoroso e visionário, e assim como eu, quem sabe deixarem-se tocar pela força e a beleza destes “Cabelos de Sansão”.
Como disse outro poeta, seu conterrâneo, “ainda sou estudante”. Tiago Araripe, mesmo à revelia de sua modéstia, é um mestre a quem devo tributo.
Saravá, irmão!
Zeca Baleiro
são paulo, setembro de 2007
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