Eu e meu irmão Flamínio Araripe, prontos para ir à escola | Foto: acervo de família.
Era uma vez um mundo sem televisão, celular ou jogos eletrônicos.
O mundo onde vivi no Crato cearense, quando criança. Nele, a expressão eletrônicos soaria como um palavrão alienígena.
A imaginação era exercida de muitas outras formas. Nos jogos de bila (bola de gude) na Praça da Sé, nas estripulias com meu irmão Flamínio no quintal de casa, ou comendo siriguelas, sapotis, mangas, cajaranas e outras delícias nos pés de fruta de sítios como o da minha bisavó Maria do Carmo, no bairro do Lameiro.
As aventuras no quintal incluíam perigos como fazer um canhão improvisado com cano grosso, chumbado numa extremidade e montado numa espécie de tripé, onde socávamos bombas juninas do tipo rasga-latas acesas, pedras de grosso calibre e mirávamos o muro da casa vizinha com o intuito fazer nele buracos nada ornamentais.
Ou a instalação de um “laboratório” num cubículo insalubre, abastecido com produtos surrupiados do laboratório de verdade do meu avô José de Figueiredo Filho, jornalista e farmacêutico. Ali, misturando substâncias - algumas de alto risco, como ácido muriático - anotávamos cada “fórmula”, imaginando descobrir a qualquer momento algo de grande relevância para a ciência e a humanidade.
Ou ainda, sobre o telhado do sobrado onde morávamos, com visão da praça e de outras casas, curtíamos observar o movimento das pessoas com a agradável sensação de não sermos percebidos.
A imaginação recebia estímulos também do mundo sonoro das bandas de pífanos, reisados, maneiro-pau, repentistas, cantadoras de coco, atividades que eu assistia a acompanhar meu avô José, também folclorista e historiador.
Ah, e havia também o rádio do meu avô, um mundo à parte de onde brotavam canções das mais diversas partes do planeta.
Em meio a tudo isso, existiam os contadores de histórias. No alpendre da casa no Lameiro, por exemplo, um deles fazia a festa da criançada: Vicente Alexandre. Suas narrativas falavam de reis, príncipes, princesas, terras distantes, feiticeiros, perigos e astúcias.
Nas palavras de Assis Lima, autor dos livros Conto popular e comunidade narrativa e Contos populares brasileiros – Ceará, o repertório de Vicente Alexandre, de tradição oral, incluía "contos maravilhosos (com elementos mágicos) e histórias de proveito e exemplo".
Nada era tão poderoso aos meus ouvidos de criança do que as narrativas na voz de Vicente. Contador de histórias nato, sempre que ele precisava sair de cena era sob veemente protesto da criançada.
Com o decorrer dos anos, me tornei um admirador das diversas produções que percebo resultarem de um processo de imaginação ativa.
Mais abaixo, a transcrição de uma das histórias contadas por Vicente Alexandre. Para você ler e imaginar-se criança em certo alpendre de um sítio no Lameiro.
TRIBUTO À IMAGINAÇÃO
E por falar em imaginação, eis um recorte do concerto Terramarear (abril/2022), realizado no Palco Aberto da Casa de Vovó Dedé, instituição que promove educação gratuita para crianças e jovens da periferia de Fortaleza.
No palco, Caio Castelo (direção musical, guitarra, vocais), Dândara Marquês (baixo, vocais) e Igor Ribeiro (bateria, vocais). Nos bastidores, a competência da produção de Dalwton Moura e de toda a equipe técnica da Casa de Vovó Dedé.
Coração Cometa é a música que abre o meu primeiro álbum, Cabelos de Sansão (Lira Paulistana 1982/Saravá Discos 2008). Um disco com 40 anos, pois.
Acompanhe meu canal do YouTube e veja mais edições de números deste show. Neste caso, é melhor que imaginar pelo que percebeu no vídeo acima.
Vicente Alexandre Ferreira da Cruz nasceu no sítio Lameiro em 1934, passando a residir na fazenda Condado, no município de Pio IX (PI) desde 1960. Meu irmão Flamínio, jornalista, o entrevistou para os livros de Assis e obteve dele o relato de 12 histórias. Selecionei uma delas, que lembrei ter ouvido quando menino, para ilustrar esta crônica. Com um pedido a você, um dos leitores pingados que aqui me acompanham: imagine o próprio Vicente contando a história à noite, rodeados por crianças num alpendre rústico de uma casa de sítio do interior, ao som de grilos e corujas. Imagine seu sotaque, sua voz mansa, seu senso de ritmo narrativo envolvente, quase sempre hipnotizante. Visualizou a cena? Boa viagem!
O RAPAZ QUE NÃO TINHA MEDO
Disse que era um rapaz que ia viajando, aí, chegou adiante numa trevessia. Aí, perguntou numa pensão – agora no canto dessa trevessia tinha essa pensão –, aí, pergunta:
- Dona, essa trevessia é muito adiante pra trevessar?
Ele... aí, ela disse:
- Bom, meu senhor, essa trevessia tem mais de légua. Agora lá na frente, antes de trevessar ela tem uma casa de visão, mas todo mundo que vai pra... que trevessa pra lá, amanhece o dia morto. No outro dia, meu marido vai só enterrar. Ele foi, disse:
- Bom, mas num tem nada com isso não, a gente é pra morrer mesmo.
- Meu senhor, num vá não, durma aqui que é mió.
- Não, mas eu quero ir, que eu quero man... seguir viagem pra andar mais depressa.
- Pois vá.
Aí, ele seguiu. Quando ele chegou adiante, trevessou a trevessia bem onze hora da noite, ele chegou nessa casa, uma casona do tamanho dessa, agora tinha um alpendre na frente, aí, ele ficou, aí, disse: - Agora eu vou demorar um pedaço aqui, vou armar minha rede, aí, quando... agarrou um bocado de carne, espetou num... botou num espeto, fez um fogo, foi assar.
Pouco mais, ele deu fé, foi a espetadona de sapo por riba da carne. Só aquele bração com aquela espetada. Ele disse: - Home, tire essa arrumação daqui...
Quando ele arribava a espetada de carne, a espetada de sapo acompanhava também. Ele tornava a botar de novo, a espetada de sapo em riba da carne, ele foi, agarrou um facão véio que tinha, sacudiu nesse braço com essa espetada de carne que avoou longe esse sapo. Aí, foi acabar de assar a carne dele, ele foi comer, sentado na rede. Com pouco mais, e foi... Aí, disse: - Home, aqui tá fazendo é um frio medonho, e eu vou já é entrar é pra dentro.
Aí, abriu a porta – a porta era toda encostada, num tinha tranca – , aí, levou a rede dele, botou na sala.
Pouco mais ele viu aquilo dizer... aí, viu aquilo bater lá pra dentro: Bei! Bei! Bei!, e derrubaram tudo. Aí, ele disse: - Óie, aqui parece que tem gente!
Pouco mais ele viu aquilo dizer:
- Eu caio?
Aí, ele disse:
- Oxente!
- Eu caio?
Aí, ele foi e disse:
- Pode cair.
Pou! (...) Ele disse: - Ora, que armada.
Pouco mais:
- Eu caio?
Ele disse:
- Eu... que me importa! Caia!
Bei! Logo mais respondeu de novo:
- Eu caio?
Ele disse:
- Pode cair inté tudo, que eu num me importa.
Bei! Caiu pra lá. Aí, um pouco mais, lá se vem aquele... um bolo, nem cabeça nem pé, só aquele bolo rolando no meio da casa. (...) em procura da rede dele, ele riscou o fósforo, a pior armada mais feia do mundo, ele disse:
- Se passar aqui, eu corto de facão.
Quando foi passando, ele lapeou o facão, bateu no cimento que chega o fogo clareou. Aí, cravou uma muié na cintura dele, se abraçou-se com ele. Aí, ele foi, se agarrou-se com ela, aí, ela gritou:
- Me solte!
Ele disse:
- Num solto!
- Me solte!
- Num solto!
- Me solte, que eu lhe dou uma coisa!
Aí, ele disse:
- E o que é?
- Bora aqui acolá ver que tem um bocado de coisa pra você.
Ele saiu com... com o facão. Aí, chegou lá num canto de parede, dentro do quarto, disse:
- Cave aqui, o que tiver aqui é seu.
Ele disse:
- Cave, que foi a senhora que enterrou.
Aí, ela foi, cavou, descobriu um caixão de ouro e entregou a ele. Aí, disse:
- Aqui ainda tem mais. Pois cave.
- Não, cave que foi você que enterrou.
Aí... aí, ele foi e cavou. Aí, encontrou tudo bem rasinho, outro caixão cheio de ouro. Aí, ela disse:
- Pronto, isso daí tudo é seu, agora fique aí, que eu vou m’embora.
Aí, ele fic... armou a rede dele, foi dormir o sono dele, quando amanheceu o dia, tava o ourão todinho no meio da casa, ele foi agar... juntou tudinho, botou pra debaixo do alpendre, aí, ficou com uma ruma de ouro, imaginando como era que levava.
Bem cedinho, lá se vinha o homem da pensão. Quando chegou, avistou ele no alpendre, disse: - Oxente! Aquele home manheceu vivo hoje, o que significa aquilo?
Aí, quando chegou, disse:
- Meu senhor, como foi? Todos que vêm aqui, eu já tenho enterrado num sei quantas pessoa aqui, e hoje o senhor amanhecer vivo?
Ele disse:
- Ora, os cabra que são daqui é mole, vem espiar o que era que tinha aqui nessa casa.
Aí, o home chegou, ficou doidim com tanto do ouro, aí, disse:
- E o que é que a gente faz?
Ele disse:
- O que a gente faz é buscar, arrumar uns burro e levar pra casa, você fica com a metade, que eu fico com a metade, que eu num quero tudo pra mim não.
Ele entregou o ouro a ele, aí, foram repartir, repartiram o meio, compraram um burro, botaram, fizeram as carga, aí, levaram.
Aí, quando chegou na pensão, ele conversando, aí disse:
- Dona, eu nunca... nunca achei uma coisa que me fizesse medo em minha vida. No dia que eu achar uma coisa que me faça medo, aí, eu deixo de andar no mundo. Aí, a... tinha uma moça muito cheia de prosa, aí, disse:
- Aí, o senhor vai passar aqui quantos dia?
Ele foi e disse:
- E vou passar uns três dia pra eu poder viajar, enquanto eu arrumo uns burro, arrumo umas carga, umas coisa.
Aí, ela ganhou as capoeira pegar um nambú. Aí, ela armou uma arapuca, aí, pegou uma nambú, aí, botou numa caixa. Aí, enrolou bem enroladinha de cordão, deu aquele nó bem bom. Aí, no dia dele viajar, disse:
- Óie aqui uma caixinha de doce pro senhor comer no meio do... da trevessia, quando você tiver com vontade de beber água.
Ele disse:
- Tá bom.
Ele levou. Quando ele chegou no meio da trevessia, ele disse: - Vou espiar que doce é esse. Aí, desenrolou a caixa, quando abriu, a nambú deu um espanto a ele, que ele caiu pra trás. Ele disse: - Ah, agora achei quem me fizesse medo! Nunca tinha achado! Mas será possível, uma nambú?
Ele disse: - É o jeito eu voltar pra trás.
Aí, voltou. Quando chegou, disse:
- Bom, dona, eu achei o que me fizesse medo, nunca tinha achado na minha vida. Foi uma nambu que me... fazer medo. Agora que negócio é? Casar com a senhora.
Aí, foi cuidar no casamento. Ele foi, se casou-se com ela, aí, ficaram por conta da pensão, foram viver na melhor riqueza.
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Vicente Alexandre Ferreira da Cruz. Crato. 02/82
Recolhido por: Flamínio Araripe AT 326 — The youth who wanted to learn what fear is (o jovem que queria aprender o que é o medo)
Armada - pop. - arrumação extravagante ou bizarra, assombração.
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